Lábios Vermelhos

     Sentado em uma carteira, em uma carteira fria de metal, Liam prestava atenção na aula. Estudava em uma das melhores escolas de Manchester, uma escola de burgueses, de nariz empinado. Mas suas origens eram diferentes.
     Vinha de uma família pobre, que morava perto de uma favela, seu pai e mãe sofriam para sustentá-lo. Ainda bem que era filho único, se a mãe pudesse engravidar de novo as contas iam ficar pesadas para a família. Mas a mãe não o deixava trabalhar, não. "Lugar de criança é na escola", ela dizia. Por isso sempre se aplicou aos estudos. Tanto que conseguiu essa bolsa para terminar o ensino médio.
     Porém, naquele dia havia algo diferente. Enquanto ouvia a velha professora falar e anotar as fórmulas na lousa, uma bolinha caiu.
     Uma bolinha vermelha, lisa, fria e escorregadia, daquelas que se compra no supermercado em uma máquina, apenas 10 cruzeiros. Mas aquela bolinha era diferente, saltava da carteira pulando, rolando, até parar em seus pés.
     Suas mãos se fecharam por impulso involuntário. Assustou-se. O que fez a mão se fechar? O que tinha de extraordinário nessa bolinha? Era comum, já brincara com uma antes. Mas ao mesmo tempo era diferente, chamava-o, pedia seu toque. Liam desviava os olhos, tentava anotar as fórmulas, ou prestava atenção nos outros, mas não adiantava. Procurava, então, outra coisa para se distrair, no entanto a ansiedade em seu peito era maior, a adrenalina corria em suas veias deixando-o nervoso.
     Não aguentou mais. Liam engoliu seco, esticou a mão e discretamente pegou-a, colocando-a rapidamente no bolso do agasalho. Ah! Esses prazeres tão grandes e imperiosos! Ao tocá-la, uma avalanche de sensações ocorreu em seu corpo. As pontas de seus dedos saboreando a textura emborrachada e fria, escorregando pelo suor em sua mão. Aquele sentimento de satisfação... As mãos negras contrastavam com o vermelho da bolinha.
     De repente, toda a glória se foi. A dor em seu peito dissipara-se, agora era seu coração que doía. A menina dona da bolinha nada percebera, que ele tomara do chão para si, não parecia ser preciosa para sua dona. Menina rica, devia ter muito mais. Mas Liam, pela primeira vez em sua vida, sentiu angústia.
     A bolinha era dela, não dele, ele devia devolvê-la, mas também queria ficar com ela. Havia uma batalha em seu interior, travada por dois lados, ambos com razão. Sua mãe sempre ensinara que ele devia ser correto, justo, não devia pegar algo que não era seu, era uma pessoa de ética. Mas dentro de si uma outra voz falava que ela agora era sua, "achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado", que a menina tinha dinheiro, a sociedade era injusta com ele, ela era injusta com ele e, por isso, deveria ficar com a bolinha.
     Quando o sinal tocou, Liam foi correndo ao banheiro, ainda com a bolinha no bolso. Começou a lavar as mãos, depois os braços, lavou até o rosto e, olhando-se no espelho, sentiu-se sujo, igual àqueles traficantes perto de sua casa, gente desonesta.
     Olhando sua imagem refletida, decidiu-se. Ia devolver a bolinha, a garota não era culpada de perdê-la ou de estar em uma posição social melhor, e ele era um homem honesto, íntegro. Se ela achasse que ele tinha roubado, que achasse! Não tem problema. Todo burguês acha que negro é ladrão, não? Mas ele saberia em seu interior que era puro de coração.
     Ao voltar à sala de aula, só sobrara a garota, agachada no chão, procurando desesperadamente o pertence precioso, precioso para ambos; Liam sentindo-se culpado e, ao mesmo tempo, feliz, retirou a mão do bolso e lentamente a abriu, observando pela última vez a bolinha e sentindo-a. Tocou no ombro da garota e estendeu a mão. A expressão dela era indecifrável, mas ela pegou a bolinha de sua mão, as mãos dela eram quentes, e depois...
     Ela o beijou. Foi um beijo ingênuo, na bochecha, ela até teve de ficar na ponta dos pés para alcançar seu rosto.
     Mesmo assim, aquele beijo na bochecha, quente e úmido, aquele outro sentimento, novo, nascendo, as pernas trêmulas... Quando virou-se para olhar, lá estava ela, com um sorriso radiante, os dentes brancos como estrelas alinhadas, acendiam um fogo dentro dele e o deixava atordoado.
     Ela foi embora, e ele de volta ao caminho de sempre para casa lembrava-se da bolinha, do beijo, dois acontecimentos tão rápidos e tão marcantes. Estava com dor na garganta, alguma coisa a fechava, apertava, aquele beijo! Sentia-se emotivo. As lágrimas inundaram os olhos, rolaram pela face e caíram no asfalto quente. Pensava na bondade da garota e nos lábios, que deviam ter sido alimentados com finas iguarias, que beijaram a face suada e humilde de um pobre.
     Quanto mais pensava no beijo e na garota, mais seu corpo doía, um sentimento dilacerante tomava conta dele, mas havia também alívio.
     Contudo, naquela noite, deitado com seus pais em uma cama de casal com apenas um cobertor, Liam chorou. Chorou de alegria, de felicidade ou então chorou por nada, chorou quieto, pois precisava chorar. As lágrimas saíam sem um porquê, mas ele chorou e sabia que amanhã seria um novo dia, com mais mil garotas e outras tantas bolinhas.

Nenhum comentário

Postar um comentário

Layout por Maryana Sales - Tecnologia Blogger