Troca de Usuário




O sinal do término da aula soava como música, enquanto o vento mexia as folhas das árvores altas, ao lado da biblioteca do colégio. Contudo, mais abaixo, os pobres alunos sofriam com o calor daquele dia de inicio de verão. Raphael era um deles, e caminhava apressadamente pelo corredor externo em direção a saída de trás, sonhando com o carro novo que sua mãe comprara semana passada e o maravilhoso ar condicionado que viera junto com ele. Aquele provavelmente era o dia mais quente desde o verão passado, isso já estava deixando Raphael maluco.
            Finalmente, na saída, ele procurava impaciente, olhando de um lado para o outro em busca do lifan vermelho novinho de sua mãe. Por um instante estremeceu com a ideia de ter de ficar ali mais meia hora naquele inferno, mas antes que pudesse imaginar essa sensação percebeu que o carro so estava estacionado um pouco mais para frente do que de costume, então caminhou em sua direção aliviado.
            Ao chegar no carro Raphael abriu a porta da frente e jogou sua mochila para o banco de trás.
            - Cadê meu beijo? – perguntou Julia, agarrando o rosto do garoto para que este não lhe escapasse, e antes que Raphael pudesse resmungar qualquer coisa, ela continuou – E aí bonitão, como foi a escola?
            - Ah, normal mãe... – disse ele, enquanto esfregava a Mao no rosto para tirar a marca do batom vermelho de sua mãe.


            Finalmente, em casa, Raphael deixou seu material no quarto e foi logo para a cozinha almoçar. Depois do almoço, foi ate a rede ler um pouco. Acabou dormindo e depois decidiu que iria procurar algo mais útil para fazer na internet. O computador ficava no seu quarto e, sendo filho único, não tinha problemas, como ter que revezar horários ou qualquer coisa do tipo, portanto costumava passar horas e horas navegando na internet, conversando com pessoas pelo MSN, stalkeando pelo facebook, twittando, etc...
            Raphael era um típico estudante do segundo ano de classe media altaq, tirando o fato de ser líder do time de vôlei do colégio. Contudo, apesar deste seu lado esportista, ele também era um nerd, o que lhe permitia fugir das panelinhas e ser amigo de quase todos os garotos da série. Alem disso tudo, Raphael amava animais, seu gato já estava com 8 anos, mas, graças aos cuidados de seu dono, continuava firme e forte: o sonho de Rapha era se tornar um veterinário.
            Devia ser mais ou menos umas 16h quando Rapha recebeu uma mensagem de que um novo contato o havia adicionado no MSN. Ele logo imaginou que devia ser alguém de algum jogo, provavelmente de world of warcraft que era o que ele estava jogando no momento, pois isso vivia acontecendo. Ele aceitou e foi logo conversar com a pessoa.
            - E aí, tudo bom? – perguntou ele, simpaticamente.
            - Tudo, e com você? – a resposta veio quase que instantânea, o que impressionou um pouco o garoto. Alem disso, o nickname daquele estranho era diferente dos outros, simplesmente dizia “Usuário 2”.
            - Também. – respondeu Raphael depois de algum tempo perdido em seu pensamento.


            As horas se passaram sem que nenhuma oura mensagem fosse enviada ou recebida, ele inclusive já havia se esquecido daquele novo estranho, até o momento em que seus olhos passaram a doer e então começou a se despedir dos amigos para sair. Porém, o último contato do qual restava se despedir era o “Usuário 2”. Rapha pensou um pouco, estava curioso quanto àquela pessoa, não poderia simplesmente sair. Por fim, perguntou:
            - Desculpa cara, mas da onde mesmo que eu te conheço?
            - Você não me conhece. – respondeu ele tão rápido quanto da ultima vez.
            - Jogo? – insistiu o Rapha.
            - Também não te conheço.
            - Ah... Bom, qual seu nome então?
            - Porque não deixamos assim?
            - Han? – Rapha estava confuso. Parecia que não estavam falando a mesma língua.
            - Porque não continuamos estranhos?
            Ele não estava mais entendendo nada, mas sua mãe já estava chamando para o jantar havia alguns minutos e ele não tinha tempo para discutir, então aceitou. “Por que não?”pensou consigo mesmo, despediu-se e saiu.


            Enquanto comia, Rapha pensou em comentar com sua mãe o que acontecera, mais logo desistiu da ideia; provavelmente sua mãe começaria com um discurso como “por que não se deve falar com estranhos”, mas ele tinha certeza que não havia perigo algum, já que não era o tipo de idiota que se deixava influenciar por pessoas na internet. Se esse cara estivesse mal intencionado, ele iria perceber e então simplesmente pararia de falar com o sujeito, pronto. Tudo estava sob o mais absoluto controle.
            E como para provar isso para si mesmo, nas semanas seguintes, Raphael continuou a falar com o estranho. Entretanto, quanto mais conversavam, mais ele ia se surpreendendo com a incrível facilidade que tinha para se abrir para aquela pessoa desconhecida, e o modo como acabava se dando conta de sentimentos e pensamentos que nem mesmo ele sabia que possuía. Como ambos não possuíam cotidianos em comum para discutir, eles conversavam sobre assuntos mais variados, desde coisas como aquecimento global ate questões como “qual é a diferença entre o real e o que acreditamos ser real”. E mesmo assim, o tempo todo ele continuou atento, mas não conseguiu encontrar nenhuma fala suspeita, nenhuma pergunta sobre onde morava ou coisas do gênero, nem se quer um comentariozinho! Em menos de um mês, Rapha estava completamente encantado, sentia como se tivesse encontrado sua alma gêmea, pois, ao contrario do que esperava, não parecia ser o único a estar entorpecido com todas aquelas descobertas, sentia como se ambos estivessem redescobrindo o mundo, juntos!
            A única regra para as conversas entre eles era “sem pergutnas pessoais”, e isso foi o que derrubou de uma vez qualquer desconfiança que Rapha poderia ter sobre seu novo amigo, mergulhando-o ainda mais naquele universo. Na escola, por exemplo, ele olhava para as pessoas que andavam a sua volta e via nelas o que havia deixado de ser, pensava no quão tolas eram. Depois, passou a observá-las também como um cardume que se mexe em sincronizada cegueira, tornou-as seu objeto preferido de estudo; começou a analisar as tendências e vícios da sociedade, os relacionamentos e as formalidades: todos quaisquer padrões que seus novos olhos curiosos conseguissem alcançar. Mais tarde, relatava suas descobertas para seu amigo, que sempre usava de suas constatações para confirmar suas próprias suspeitas. E, juntos, ambos chegaram a uma so conclusão: “a sociedade não pensa, só nós”.


            Contudo, apesar de toda essa convivência, Rapha ainda não sabia nada sobre aquela pessoa, nem ao menos se era um garoto  ou uma garota. Ele já havia tentado descobrir antes, mas nunca conseguira nem uma pista sequer: toda vez que se falavam “Usuário 2” mudava o gênero de seus pronomes. Infelizmente, perguntar estava fora de cogitação, ele certamente não responderia e isso soaria como um desrespeito à única regra que ambos elegeram. Não parecia haver saída, então Rapha acabou deixando para lá e criou sua própria imagem daquele amigo.
            Porém, em um dia qualquer, no meio da aula de gramática, Rapha teve uma brilhante ideia; lembrou-se de que algumas semanas antes havia dado seu número de celular para seu amigo com o intuito de que pudessem mandar torpedos um para o outro durante o tempo que não estivessem no computador. Seu plano era pegar o número do celular que respondeu suas mensagens e telefonar para ele, assim ao menos ficaria sabendo, pela voz que atendesse ao telefone, se seu amigo era homem ou mulher. “Com sorte, ele não bloqueou o número”, pensou.
            “Mas que droga é essa?”, disse para si mesmo, assustado. Rapha conferiu as outras mensagens e a mesma coisa: as mensagens vinham com o número do correspondente, mas nada parecidos com o que deveriam ser, tinham muito mais algarismos do que deveriam e até algumas letras e símbolos. Aquilo deixou Raphael confuso durante um bom tempo. “Será que não seria algum tipo de bloqueio? Alguma falha?” pensava em varias possibilidades, mas no fundo não tinha a menos ideia do que aqueles números podiam ser


            Mais tarde, em casa, Rapha ainda pensava nos números e sua curiosidade estava se transformando em preocupação – as coisas começavam,a não fazer mais sentido. O pior é que ele não poderia conversar com seu amigo sobre o assunto, pois ficaria óbvio qual havia sido sua intenção, seu patético plano para descobrir mais sobre sua alma gêmea. Toda essa reflexão fez com que pensasse um pouco sobre sua vida e, por fim, percebeu que na realidade estava obcecado por aquele estranho. Envergonhou-se de ficar por aí sonhando com alguém que ele nem ao menos sabia se era um cara ou uma garota. Precisava parar, não estava mais se reconhecendo, decidiu então que não iria mais falar com o “Usuário 2”.
             Foi difícil, mas Raphael finalmente criou coragem para bloquear e deletar o seu querido amigo de sua lista de contatos do Messenger, e passou o resto daquela noite se torturando com a abstinência que a falta daquela pessoa lhe causava, mas, no final, de nada adiantou. Na manha seguinte, um novo torpedo o aguardava no celular. Rapha não resistiu e leu: “o que você esta fazendo?” uma pontada de remorso atingiu-o na boca do estomago; não podia responder. Apagou a mensagem de seu celular e tentou pensar em outras coisas. Não tinha certeza se o que estava fazendo era certo, tinha medo de estar perdendo o que lhe era mais valioso; tinha medo de se arrepender amargamente para o resto da vida caso estivesse enganado; tinha muito medo e por isso estava fugindo.
            Mais tarde, já na escola, Rapha saiu da sala para o primeiro intervalo e começou a vagar sem rumo pela escola; todo lugar que ele olhava lembrava-o de seu amigo, ou de como o imaginava: uma garota da sua idade, linda e misteriosa, com cabelos ruivos e encaracolados descendo pelos ombros delicados, com uma voz musical semelhante a um instrumento celeste. Sempre, antes de dormir, ele costumava imaginar seu rosto, como seria a sua voz e seu toque. Apesar de seu amigo, na realidade, nunca ter dado pista alguma quanto ao seu sexo, a verdade era que Raphael apaixonara-se por aquela possibilidade.
            Durante todo o resto da manha, mais e mais mensagens eram recebidas vindas do “Usuário2”. Porem, com o tempo, a ansiedade de Rapha se dissolvia em uma singular melancolia, ao passo que pouco a pouco se conformava. “Em breve isso não passara de um sonho”, repetiu para si mesmo.
            Na última aula, quando já estava se sentindo conformado o suficiente, permitiu-se dar uma olhada na última mensagem que recebera de seu amigo; queria testar o quanto aquilo mexeria com seus nervos:

            // Não espere acordar tão cedo... //

            Em um primeiro momento, não entendeu o significado daquela frase, mas poucos segundos depois chegou uma segunda mensagem:

            // ...que este sonho ainda vai durar. //

            Rapha ficou completamente imóvel, paralisado. Finalmente, com um movimento brusco, arrancou a bateria e o chip do celular; jogou-os no fundo da carteira, depois respirou fundo e tentou entender a situação. “Foi como se ele tivesse lido minha mente!”, pensou, “mas será que é realmente possível que alguém possa, em tão pouco tempo, conhecer tão bem uma pessoa a ponto de conseguir adivinhar o que ela estaria pensando?”
            De nada adiantava tentar se acalmar, Rapha não estava mais com medo, estava aterrorizado; vozes gritavam em sua cabeça, repetindo as mesmas perguntas que fizera a si mesmo na primeira vez em que se falaram, porem agora acompanhadas de um horripilante sentimento de estar vulnerável. Ele precisava conseguir se acalmar. Então, pensou em como nunca disse seu endereço, telefone de casa ou qualquer coisa assim, do modo que não havia por que se preocupar. “Está certo que o que aconteceu foi estranho, mas com certeza existe alguma explicação plausível para tudo isso”, disse para si mesmo – e deu o assunto por encerrado.


            Alguns minutos depois, Raphael já estava em casa, já havia almoçado e agora estava assistindo a um filme qualquer que estava passando no Telecine. As coisas ficaram mais tranqüilas enquanto voltava para casa com sua mãe. Ele conseguiu ficar um pouco mais calmo, e ao passo que foi encontrando coisas para fazer, quase se esqueceu de toda aquela história.
            De repente, o telefone tocou, e Raphael se levantou para atender. Caminhou despreocupadamente de seu quarto até a base do telefone, que ficava na sala de visitas e atendeu.
            - Alô?
            - Olá, Raphael, como vai indo seu sonho?
            O baque seco do telefone caindo no chão ecoou dentro da cabeça do garoto como um machado em um bosque. Talvez tenha sido o fato de estar obcecado que fez com que sentisse tanto medo, talvez tenha sido a voz angelical que ele só ouvia em seus delírios, talvez até mesmo o simples de ele estar sozinho em casa; o motivo não importava mais naquele instante, nada importava mais naquele instante, nada importava, senão fugir. Rapha correu em direção ao seu quarto e, numa tentativa desesperada, fingiu que nada acontecera e voltou a assistir televisão. Porém, o filme não estava mais lá, a imagem havia ficado preta e, depois de alguns instantes, um rosto jovem e feminino de cabelos ruivos com traços orientais emergiu de dentro da escuridão da tela.
            - ME DEIXE EM PAZ! – berrou o garoto, tentando parecer furioso.
            - Você não queria saber quem eu sou? – respondeu a bela voz, quase que musicalmente.
            - NÃO! – uma força enorme dominou Rapha, que pegou seu livro grosso de biologia e o arremessou em direção ao monitor, que quebrou engolindo o livro em suas entranhas metálicas. Mas a voz ainda continuava a falar.
            - Não adianta tentar fugir.
            - Por que está fazendo isso comigo? – lágrimas começaram a correr pelo rosto do rapaz.
            - Eu não estou fazendo nada com você. Por que você não dá uma olhada no que fez durante a aula hoje? – disse a voz, calma e gentilmente.
             Não havia mais contra o que lutar, Raphael perdera todas as suas defesas, então, lentamente, levantou-se da cama e caminhou até sua escrivaninha.
            - Abra seu caderno. – continuou a voz de sopranos.
            Rapha obedeceu e o que viu ao folhear as páginas das últimas semanas lhe deu ânsia. Não havia nada, enquanto revirava o caderno horrorizado, não via nada além da versão manuscrita de todas as conversas por MSN que teve com o “Usuário 2”. Durante todo aquele tempo, vários desenhos de sua musa, seus próprios pensamentos e sonhos a seu respeito, estavam todos ali, até mesmo uma pequena história, que o chocou; era a história do que estava lhe acontecendo agora, e as últimas palavras escritas eram: “apavorado, o garoto revirava as páginas de seu caderno, enquanto lentamente entendia o que ocorrera. Então, sem questionar mais nada, ele olhou para trás...”
             De fato, não existiam mais pergutnas para serem feitas, tudo estava explicado; Rapha criara o Usuário 2. todas as mensagens, as conversas, nada daquilo jamais fora real. Raphael se virou, finalmente, e lá estava sua gata, Lola, sentada sobre a cama.
            - Olá, Raphael. – disse Lola mantendo sua expressão doce e serena.
            Rapha caminhou mais uma vez pesadamente em direção a cama, e sentou-se do lado de sua gata. Sua expressão era vazia e seus olhos enevoados. Rapha levantou a mãe e então a repousou levemente sobre a cabeça da gatinha.


            Horas se passaram ate que sua mãe voltou do trabalho. Ser empresária foi o único meio que arrumou para ter condições de sustentar seu filho sozinha e, por conta disso voltava sempre para casa tarde, no mínimo às vinte horas. Naquela noite, ela havia saído do serviço cedo, por isso pôde passar na padaria e comprar uma torta de frango para jantar com seu filho.
            - Rapha! Rapha! Trouxe sua torta favorita!
            Sem obter nenhuma resposta, Julia começou a procurar pela casa, até que chegou finalmente ao fatídico quarto.
            - Raphael? – a cena hedionda que Julia encontrou ao abrir a porta fez com que ela vomitasse.
            Uma pequena massa sanguinolenta de carne, ossos e pelos estava estatelada no chão, bem enfrente a seus pés, enquanto marcas de sangue e pancadas na parede ilustravam o acontecido com aquilo que um dia havia sido a gata Lola. Um cheiro insuportável de sangue impregnava todo o ambiente e, bem ao seu lado, com as mãos, o rosto e a blusa tingidos de sangue, rapha tranquilamente digitava com alguém em seu MSN.
            - Já vou...

Nenhum comentário

Postar um comentário

Layout por Maryana Sales - Tecnologia Blogger